No apartamento de um conjunto habitacional, uma velha e desgastada TV CCE, com as antenas abertas em um V imenso, mostrava em sua tela tremulante e instável o noticiário, onde uma moça de cabelos curtos e de cor indefinível falava sobre o fenômeno mais esperado do ano.
“Os observatórios estão lotados desde essa tarde nas grandes cidades, mas os especialistas afirmam que o espetáculo poderá ser observado a olho nu...”
Um homem de camisa social branca e com a longa barba negra chega no vídeo ao lado da repórter e diz:
“Não há necessidade do uso de equipamentos astronômicos, nem proteções especiais, basta que você vá a um lugar onde não haja luzes fortes, como há nas cidades. Procure um lugar com boa visão do horizonte.”
A moça de cabelos sem cor definida (talvez pelas oscilações constantes da transmissão na TV velha) sorri e despede-se do homem, e torna a olhar para a câmera e complementa:
“Aproveitem, pois o alinhamento de planetas só poderá ser visto novamente daqui a 100 anos. Os especialistas ainda dizem que o melhor horário para se observar o fenômeno é por volta das 23:00 horas.”
Depois da repórter despedir-se dos telespectadores com um simpático e ensaiado boa noite - anunciando o fim do telejornal - um comercial de filmes reprisados começa a ser exibido na tela e a TV é desligada imediatamente.
18h30min
O trânsito nessa hora do dia, nessa merda de grande cidade sempre deixava Marcos nervoso. Já tinha engolido umas dez pastilhas anti-acidez estomacal, mas sua visão estava ainda turvada pela horrível dor de cabeça que tomava conta de suas ações. Olhava a longa e aparentemente interminável fila de carros e perguntava-se por que diabos não utilizava um daqueles modernos serviços de aero-taxis?
Talvez eu não tenha dinheiro e talvez eu more ainda na porra de condomínio que não tem lugar para a porra do helicóptero pousar...
Uma grande Palio Weekend azul marinho estava parado na faixa ao seu lado, e a mulher de meia idade lutava contra o trânsito maldito e contra os filhos que brigavam no banco traseiro. “Ao menos estou sozinho” – pensava. Não tinha os filhos para não lutar contra o desejo de matá-los sufocados, ou uma esposa gorda e destruída por varizes e celulite para fingir morrer de amor.
Apertou a buzina ao acaso e o soar desta juntou-se à cacofonia infernal naquela avenida repleta de carros e motos, num congestionamento realmente desaminador de se olhar.
Marcos abaixou a cabeça no volante do carro e, sentindo o ar condicionado refrescar-lhe a memória, pensava na merda de vida que levava nos dez últimos anos.
Entrara logo após sair da faculdade de engenharia na mesma empresa em que agora ocupava um bom e rentável cargo. Bom, pelo menos ganhava mais que os seus amigos maconheiros que cursaram filosofia e hoje davam aulas e dirigiam carros decadentes. Não gostava de nada daquilo, mas ao menos fingia gostar. Marcos sabia fingir muito bem as coisas, ainda mais acurada tornava-se sua perícia, quando o seu superior supervisionava odiosamente o seu trabalho, que era exatamente supervisionar outras pessoas do mesmo odioso modo. Chegou a ter nojo de si mesmo, mas quando chegava o cheque com seu salário mensal, esquecia tudo por alguns momentos.
Por alguns malditos momentos. Momentos esses que passava no supermercado fazendo suas solitárias e pequenas compras do mês. Geralmente consistia em levar algumas Skol a mais variada gama de comidas semi-prontas que as empresas poderiam inventar. Fingia que gostava disso também. Sentia o braço gélido da solidão tocar-lhe todas as vezes que adentrava sozinho, mas com a carteira cheia, o hipermercado moderno, e quando pagava os absurdos honorários de uma puta de luxo, pois, como dizia, podia chupar-lhe a boceta ao menos, sem o risco de ficar fodido de AIDS. Fingia que gostava quando as fingiam que gemiam de prazer. Putas frígidas, todas elas. Eram como as comidas de gosto plástico semi-prontas que saboreava após algum tempo no microondas. Alex, um amigo da época do colégio, o único que por vezes ligava para terminar com ele o suprimento de cerveja, tinha lhe dito uma vez ou duas:“Cara, porque não sai mais de casa? Não, não estou dizendo zonas, cara. Estou dizendo, procurar alguém interessante, alguém pra ficar junto, manja?”.
Não. Marcos não manjava nada. Não manjava aquela coisa de sentimentalismo, na certa eram de grande serventia a poetas homossexuais ou adolescentes tristonhas e iludidas. Pra nada mais. Certa vez, conhecera Lídia, um “alguém interessante” como diria Alex. Ela era uma fisioterapeuta ou algo assim, e tinha saído com ela uma vez. Não tinha tido que fingir as coisas com Lídia. Realmente gostara do seu realmente engraçado senso de humor, do seu sorriso despreocupado e a maneira despojada que se vestia. E ela tinha lhe dado o número do telefone. Marcos ligou, ela atendeu, mas não quis mais sair com ele. Disse estar trabalhando demais e que não tinha tempo.
Colocara o telefone no gancho e depois, novamente o retirou e ligou para Thaís, uma putinha de 19 anos que vendia o corpo pelo curso de farmácia que cursava numa faculdade caríssima do centro.
Fodera Lídia em Thaís naquela noite. Lembrava do sorriso totalmente despreocupado com as coisas da vida, nas gargalhadas e gemidos carregados de lascívia dados por Thaís. Pensava nas vestes íntimas da fisioterapeuta na infernal lingerie vermelha usada pela prostituta, e não deixara que ela se despisse dela.
Lídia sumira tempos depois, em corpos de putas luxuosas como Thaís, ou em copos de cerveja. Marcos odiava o sentimentalismo e porras como essa.
Uma praga e um aceno nada cordial dado por um moto-boy que passava rente ao carro de Marcos, indicava que a fila estava finalmente andando.
Agora, no rádio Sony de seu carro, um locutor com voz engarrafada tagarelava sem para sobre o fenômeno de mais tarde à noite.
“À merda com isso seu filho da puta”
E num toque brusco, a voz do insistente radialista foi encoberta por um súbito som de solo da guitarra de Jimmy Page, e mais tarde, Robert Plant recomeçou a cantar Black Dog, fazendo soar, dos alto-falantes, sua voz aguda e inconfundível.
O trânsito demorou a andar de novo, mas depois de algumas horas e da boa companhia do Led Zeppelin, Marcos manobrava no estacionamento do condomínio onde morava sozinho há 5 anos.
Cumprimentou rapidamente o zelador e subiu de elevador para o oitavo andar, seu apartamento.
20h30min
Marcos entediava-se com o noticiário na TV de tela plana e na mesinha ao seu lado, repousavam três latas de cerveja ritualisticamente amassadas e empilhadas. Olhava para o noticiário pensando em outra coisa, depois mudava os canais pelo controle remoto, demorando-se em alguns. Num deles, alguns jovens tocavam a merda de uma música, fazendo caras estranhas e proferindo letras apocalípticas.
Odeio a juventude. Odeio grunges. Odeio New Metal.
Pensava no desgosto daquelas mães por terem aqueles acéfalos como filhos. Canalhas drogados e imbecis tentando inutilmente ser algum Bruce Dickinson ou talvez Ozzy Osbourne. Lembrou-se de sua mãe e também que no próximo domingo teria um churrasco a ir, na cidade vizinha com a família.
- Não ouse faltar, Marquinhos – tinha dito ela.
- Nem pensar, mamãe. Estarei aí. – respondeu ele, com o entusiasmo de um condenado percorrendo o corredor da morte.
-Que porra de vida, o jornal ao lado, dobrado como o maldito entregador dobrara ainda jazia na soleira da porta, onde Marcos tinha jogado. Não se importava realmente em saber a quantas merdas andava a porra de país. Por todos os demônios! Não precisava preocupar-se com o desemprego ou com a fome! Ou tinha fingido gostar da engenharia e dos amigos imbecis de faculdade apenas para depois ter, além de fazer seu maldito trabalho, ajudar os merdas desocupados a ter um emprego. Ou pelo menos ler esse miserável jornal e ter o que conversar com os amigos metidos a socialistas na mesa do bar. Eram uns porras aqueles pseudo-socialistas . Os canalhas estavam apenas preocupados com a própria bunda, ganhavam bem, comiam bem, bebiam cerveja cara e gastavam, como ele, horrores com menininhas putas de faculdade e tinham a coragem de disserem-se socialistas, ou que porra mais. Eram uns merdas de uns fingidos, e era por esse motivo que Marcos fingia tudo, e fingira durante a maior parte de sua vida.
Talvez até mesmo com Lídia...
Não, com ela não tinha fingido. Lembrava-se daquela madrugada quando voltava para casa. Era uma noite diferente. Era uma noite sem conversas politicamente corretas ou volúveis. Era uma volta para casa com o cheiro de uma mulher diferente, não o perfume caro e totalmente irritante das putas luxuosas. Era imaginar-se diferente. Era...Era...Não estar fingindo.
Mais uma vez o canal de notícias mostrava o mundo pronto para o fenômeno. Alguns países já haviam presenciado o alinhamento dos planetas por causa do fuso horário, porém aqui seria as onze.
- Porra – disse Marcos. Vou dormir para não ver e nem pensar merda mais.
Entrou no quarto que estava na penumbra e até esqueceu-se de desligar o televisor, que continuava a mostrar místicos e magos, talvez charlatões a fazerem previsões. Depois que Marcos já havia deitado na cama, a notícia que uma família de fanáticos de uma seita no oriente matara-se em grupo, tomando veneno na ocasião do alinhamento.
No Haiti, apareceram pessoas estranhas andando vagarosamente por estradas desertas.
Eles ficaram loucos, lunáticos – contava um velho morador do local.
22h00min
O fenômeno mais surpreendente foi o presenciado em 1186, quando o alinhamento chegou a 11 graus” – “contava o homem de barbas brancas e toga de monge.
“Pelos cálculos contidos nos livros antigos, livros de sabedoria, o auge será as 23:00, um horário considerado pelos estudiosos de ocultismo e astrologia poderosíssimo nesse alinhamento de planetas. – declarou o estudioso – Não sabemos o que pode acontecer, e onde pode acontecer. Na maioria das vezes, nenhum evento sobrenatural é reportado.– finalizou ele.”
22h50min
Marcos acordou e, cambaleante tateou pelo interruptor e acendeu as luzes do quarto. Na sala, ouviu a TV falar sozinha e projetar luzes e cores nos móveis. Olhou o relógio despertador na cabeceira e pensou em sair. Afinal, é sexta feira, vou encontrar alguma merda para fazer. E pensando nisso, andou trôpego e ensonado pelo estreito corredor e depois de alguns minutos, colocava a mão na maçaneta do banheiro, querendo tomar um banho.
Na maioria das vezes, nenhum evento sobrenatural é reportado.
Girou a maçaneta bocejando e entediado.
Não sabemos o que pode acontecer, e onde pode acontecer.
Nem onde... nem quando...nem o quê...
Empurrou a porta o banheiro, e estranha e quase imperceptivelmente, ela emitiu uma luminosidade esbranquiçada, tal qual um flash de máquinas fotográficas, talvez.
23h00min
Milhares de pessoas no país todo assistiam boquiabertos em morro e lugares altos, ao alinhamento dos planetas. Professores em observatórios e místicos em seus templos, ou até mesmo na rua, davam sua visão do fenômeno, mas olhavam embevecidos para o que nunca mais em suas curtas vidas conseguiriam enxergar. O alinhamento só se repetiria após cem anos.
Cem anos...
Marcos entrou no banheiro ainda bocejando e de olhos fechados, e fechou também a porta atrás de si.
Abriu os olhos e deparou-se com uma miríade de cores rodopiando e reluzindo, como se refletissem em cristais. Tornavam-se cada vez mais intensas e Marcos colocou as mãos nos olhos, mas, de certa forma, queria olhar, mas tinha certeza que a luz em tamanha intensidade o cegaria sem dúvidas. Manteve os olhos cerrados e as mãos na frente deles. A luz penetrava por suas pálpebras fechadas e levava a sua mente o rodopio hipnotizante das cores. As cores, as cores rodopiavam e eram lindas... Eram lindas e rodopiavam... Quantas cores. Quantas cores...
Tirou as mãos do rosto devagar e abriu vagarosamente os olhos.
Sim... Eram realmente lindas. E elas mostravam cores inimagináveis em seus rodopios. Mostravam a luz esbranquiçada, que se destacava, ofuscante sobre as outras. Essa luz, essa luz, rodopiando e levando. Levava, levava a consciência e Marcos sentiu a mente ser levada do corpo.
Corpo leve... flutuante....Talvez eu possa caminhar no ar agora...Talvez...
Luzes.... as luzes rodopiam, dançam ao redor da luz esbranquiçada....E ela me leva...me leva...
?:??
Marcos acordou sem camisa e com a calça de moletom que costumava usar em casa. Sua visão estava nebulosa e turva, não conseguia enxergar nada além de vultos indistintos.
Mas, sabia que não estava no banheiro. Tinha a impressão estranha de que estava sentado numa espécie de mato, talvez grama. Alguma luz superior, forte, mas não como as que ainda rodopiavam em sua mente, brilhava ao redor.
Alguns momentos depois, sua visão começou a recuperar-se, voltava em vultos mais definidos, de árvores altas e de copas volumosas. Ao redor, grama e o céu azul, o sol brilhava forte.
Mas o que diabos aconteceu? – pensou Marcos, e começou a sentir um leve tremor na terra embaixo dele.
Onde, por todos os demônios do inferno, eu estou agora?
Os sons recomeçaram, agora pareciam passos enormes e compassados e retumbavam pelo lugar, uma planície ensolarada, cheia de árvores um pouco ao longe e a grama verde abundante.
Parece a porra do paraíso. Mas, onde diabos estão os anjos, se eu morri? – pensou ele, aturdido pela situação, mas a resposta foram baques cada vez mais fortes no chão, e, subitamente, as árvores mais ao longe começaram a cair. Marcos via suas copas tombaram com as cartas de um castelo de cartas soprado.
Pensou em se mexer, mas o que irrompeu do meio das árvores, agigantando e monstruosamente saído de pesadelos de loucos, o fez conseguir apenas gritar em plenos pulmões, e tentar aparar a morte certa com as mãos espalmadas.
Seu terror não durou muito. Aquilo andava rápido e comia mais rápido ainda...
Se Marcos tivesse caminho por ali, veria que havia mais deles, e mais de outras espécies, e certamente, teria se jogado de bom grado na boca de algum deles, quando começasse a desconfiar de onde estava...